quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

MAIS UMA DO MEU IRMÃO

A seca de futebol causada pelas férias dos atletas é sempre responsável por um aumento recordista nos casos de depressão.

Tá certo: nunca li sobre suicidas e seus emocionados bilhetes de despedida culpando toda a dor que a carência de futebol lhe trouxe. Nem nunca tive acesso a estatísticas indicando o geométrico aumento na venda de Prozac nessa época do ano, embora o sorrisinho lateral do Seu Onofre me pareça uma prova contundente.

Mas nada disso é necessário. É no futebol de boteco que noto toda essa melancolia, toda essa angústia, a dilacerar as almas abandonadas. Apesar de não perceber redução no quorum – afinal, a cerveja e o steinhagger continuam lá, com ou sem futebol – o desânimo na mesa é geral. Rostos amuados; vozes quase silenciosas; olhos lacrimejantes não escondem: que falta faz o futebol!

É nessa época que alguns aproveitadores, movidos por intenções suspeitíssimas, tentam emplacar conversas de natureza política, econômica, cultural, ou alguma outra bobagem sem qualquer importância que o valha. Não resistem, porém, à vaia coletiva. E, quando resistem, o Chapa-Quente, líder dos fundamentalistas, entra em ação:

- Quer ser limado do grupo, seu “inerce”? – grita, no seu vocabulário todo particular.

O resultado é que a conversa quase sempre descamba para as lembranças de tempos gloriosos. Tempos remotos ou próximos, não importa. Tempos em que há futebol, não essas desumanas férias.

Seu Camilo sempre conta a campanha imbatível do time de 1954, na qual o time teria vencido todos os adversários por goleada:

- Aquilo sim era futebol!

Outro dia, o chato do Alencar fez um gol e propôs que cada um contasse qual e como foi “O melhor jogo da sua vida”. A idéia pegou e todos contaram suas epopéias.

O baixinho Simone – alvo de inevitáveis piadinhas por conta do nome feminino que, segundo jurava, era nome de homem na Itália, “como o Simone Inzaghi!” – disse que o melhor jogo da sua vida não foi um que assistira, mas um em que ele próprio participara, quando garoto, no “terrão” do clube. Depois de um único treino tático feito na lanchonete, vestiu a camisa 10 e, sob a chuva e sobre o barro, fez o gol de empate no fim do jogo:

- Não sabia nem como comemorar. O uniforme não tinha distintivo para beijar. Estava frio para tirar a camisa. Corri para a torcida e caí de boca na lama. Engoli um dente quebrado. O vermelho do sangue formou uma cor engraçada com o marrom do barro. Meus companheiros nem quiseram me abraçar tamanha era a sujeira. Foi lindo!

- Deve ter sido mesmo! – desdenhou alguém.

- Legal. Mas alguém pode falar do nosso time?!? – interpelou um dos fundamentalistas que escoltava o Chapa-Quente.

“O melhor jogo da vida” do Abud foi uma partida disputada no meio do campeonato, sem muita importância para a maioria das pessoas. Justificou-se dizendo que a partida fora um marco em sua vida. Terminado o ginásio, ele ingressara no colegial. Então, segundo garantiu:

- Já podia pegar a mulherada!

Ninguém entendeu o raciocínio – Ué?! Não podia pegar antes?!? – !! E, para tentar salvar a sua história, Abud inventou que naquele dia havia dado seu sanduíche para um rapaz pobre e com fome, sentado ao seu lado no estádio. Esse, sim, teria sido o grande marco. Ninguém acreditou, claro. Ainda mais vindo do Abud. A questão era apenas pegar a mulherada, mesmo!

O jovem Pedrinho escolheu uma partida ocorrida 28 anos antes do seu próprio nascimento. Tinha sido uma daquelas recuperações fantásticas, que só aconteciam antigamente. Um empate triunfante com três gols nos minutos finais. Explicou que ouvir sobre os velhos guerreiros fizera “despertar um amor ainda maior” pelo time. Também não colou. Ficou claro que ele só queria mesmo era agradar o Seu Camilo, que lhe contara a aventura, e ganhar mais uma rodada de pastéis. Ganhou.

Seguiram-se muitas narrativas emocionadas, algumas poéticas, tratando de partidas épicas, viagens homéricas, viradas históricas, batalhas campais, muitos gols salvadores no “crepúsculo do jogo”, como diria o saudoso Fiori Gigliotti. Memórias infantis e adultas faziam os olhos de todos brilharem.

Por um tempo, a crueldade das férias dos jogadores foi esquecida.

Depois do relato retumbante de Jô Soares – o Edson tinha esse apelido por razões estéticas óbvias -, Nelsinho, o poeta-boêmio-breaco da turma, não se conteve:

- É demais para o meu coração tudo isso! Chico, mais uma Maria-Mole, antes que eu tenha um treco, por favor.

O último foi o Langberg. O “melhor jogo da vida” ocorrera em uma data muito especial. Exatamente na hora da partida estava sendo realizada uma homenagem organizada pelos velhos amigos ao seu pai, seu eterno companheiro de estádio, recém falecido. Evidentemente, não tivera como ir ao estádio.

Antes do início do evento, soube que o time estava perdendo. Mas logo a decepção foi tomada pela forte emoção da cerimônia. Esqueceu-se um pouco do futebol.

Ao final da linda sessão foi embora ansioso para a casa. O rádio do carro estava quebrado. Chegou em casa justamente quando começava o VT do jogo. Viu os gols do adversário. Viu o nosso primeiro gol já depois dos 30 minutos do segundo tempo. Viu o jogo aproximando-se do final. Perdemos.

Viu, então, um chute da intermediária, a bola encobrindo o goleiro adiantado, pulando, pulando - Entra ou não entra? Uma eternidade! - e entrando mansinha dentro do gol.

- Goooollll! Eu gritava e pulava!! E não acreditava que fazia isso vendo um VT de uma partida ocorrida horas antes. Tenho certeza que foi o meu pai que colocou a bola pra dentro do gol!

Nessa hora todos se abraçaram. A comoção foi geral. O Abud conseguiu até tascar um beijo em uma desconhecida. E aquilo que, sem querer, havia se tornado uma competição, já tinha um evidente vencedor. As três cervejas, as duas doses de steinhagger e a porção de calabresa com maionese eram todas do Langberg.

Inconformado, Jô Soares não se segurou:

- Pô! Mas esse é o mesmo jogo que eu contei. E ele nem estava lá !!

- Da próxima vez, Jô, não leva seu pai ao estádio – gritou algum desalmado escondido entre as garrafas.

Sérgio Alvarenga

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